Uma discussão sem fim à vista!
Os pedagogos – vá lá saber-se porquê – raramente entram no debate. E quando entram, no meio de tanto ruído, a sua voz mal se ouve, e a pedagogia parece ficar ausente. Talvez porque o seu discurso, que vem da experiência de vida (nas escolas e não só), não sendo carregado com a força da palavra «científica», não lhe permite frequentar a «piscina dos grandes», do campo mediático. E isto apesar da idade maior do saber (fazer) que reproduz, e que se perde no tempo!
Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço, é um conselho popular bem presente no debate. Um conselho de efeitos muito incertos, até porque, como diz outra máxima popular, palavras leva-as o vento – Não deixa de ser curioso que a maior parte das reacções e manifestos contra os ecrãs nos cheguem, precisamente, através de plataformas, às quais só com um ecrã é possível aceder[1].
A relação da escola com a tecnologia nunca esteve totalmente isenta de polémicas e conflitos[2]. E hoje, as novas tecnologias digitais, com a multiplicação de ecrãs a invadir o quotidiano das crianças, a abrir outras janelas, – infinitamente mais sedutoras e mais difíceis de controlar[3] – que afectam a sua percepção do mundo e, desde logo, o modo como acedem ao conhecimento, os conflitos agudizam-se: «Antigamente os livros exigiam uma abordagem linear, hoje-em-dia exploramos os conteúdos através de um sistema arborescente de ligações hipertextuais que podem encorajar-nos a vaguear em vez de aprofundar um assunto. (...) E mesmo que a aquisição de conhecimentos pudesse ser afectada pelo tédio, desistência ou distracção, estava sujeita a uma “ordem da razão” (...): do mais simples para o mais complexo[4]. Hoje a exploração faz-se através de um sistema de ricochetes permanentes, deixado em grande parte à iniciativa do utilizador»[5], que lhe dá uma falsa sensação de controlo do processo de exploração. Afastar as crianças dos ecrãs seria, neste sentido, a conclusão lógica. E, no entanto…
Tratemos os ecrãs pelo que são: instrumentos cujo valor depende do seu (ab)uso. Então, nem proibição nem afastamento, mas controlo – palavra que deveria ser proclamada palavra de ordem. Mas é mais fácil proibir[6]. Até porque a proibição dispensa-nos do trabalho de pensar soluções, inclusive com as nossas crianças e jovens, que os ajudem a manter uma «relação» saudável com estes dispositivos.
Nenhuma utilização de um ecrã é tóxica, para uma criança, desde que se respeitem três condições: (1) que a tarefa ou o conteúdo que o convoca seja escolhido, previamente, em conjunto com um adulto responsável, (2) que seja visto com ..., (3) que seja objecto de discussão posterior[7]... Condições difíceis de seguir e que só num espaço estruturado e controlado é possível acolher: uma sala de aula, por exemplo[8].
É fundamental aprender a usar uma ferramenta, qualquer ferramenta – inclusive os neurónios – de acordo com a tarefa projectada: ninguém usa um martelo para fixar um parafuso; da mesma forma a máquina de calcular não é usada na sala de aula, para dispensar os alunos do esforço de «fazer funcionar os neurónios», num cálculo mental, ou no trabalho de memorizar a tabuada. Dir-me-ão que, para tal, seria necessário afastar os alunos do uso da máquina de calcular. E, no entanto, ela pode ser aqui bem útil: conheço professores do 1º. Ciclo que introduziram a máquina de calcular em jogos de cálculo, onde as crianças são mobilizadas (e se divertem) a ser mais rápidas do que ela – nestas turmas a memorização da tabuada inscreveu-se neste jogo, com algumas crianças a ir além das tabuadas de 1 a 10.
Como diz António Nunes, «há momentos em que a fala é fundamental e as canetas estão paradas[9]». Diria então, tomando esta citação como metáfora de toda a organização da aprendizagem, que se o objectivo de uma dada actividade for levar os alunos a planear os passos que levam à resolução de um problema, não vejo porque não ensiná-los a projectar e a escrever a expressão numérica que aponta a sua solução e a transpô-la depois para a máquina de calcular, folha de calculo – ou qualquer outra aplicação de acordo com a complexidade da tarefa e a idade do aluno – e confirmar o resultado.
Claro que sei que uma máquina de calcular não é um smartphone, e que não consta que alguma vez uma criança tenha sido vista a brincar com ela no recreio, como é vista com os ditos dispositivos “inteligentes”. Daqui ser sensível ao argumento que defende que se afaste as crianças do smartphone no recreio – lugar difícil, ou mesmo impossível de controlar, onde o seu uso pode ser problemático – mas na condição de que a medida seja discutida com os alunos, para que possa ser compreendida e acolhida por todos.
E eis que a cruzada contra a tecnologia – não lhe bastando o smartphone como alvo – chega aos manuais escolares em suporte digital. Porquê? Como em qualquer cruzada, porque sim. Por mim até acabava com estes manuais, também porque sim. Até porque manual escolar é aquela coisa a que recorremos sem a expectativa de que algo nos surpreenda. A não ser que…
Voltemos atrás, a Philippe Meirieu, e à exploração «de conteúdos através de um sistema arborescente de ligações hipertextuais». Ora, é precisamente integrado numa estrutura deste tipo, que vejo um manual escolar: um dispositivo que suporta os conteúdos de todas as disciplinas, com pontes (hiperligações) entre eles, sempre que tal o justifique: um conteúdo de matemática – o teorema de Pitágoras, por exemplo – a apontar para um conteúdo de história; o manual de leitura, com os excertos dos textos a apontarem para as obras completas... E para evitar o risco de «vaguear, em vez de aprofundar um assunto», consequência daquela exploração, feita através de um «sistema em ricochetes permanentes, deixado à iniciativa do utilizador», de que fala Philippe Meirieu, este dispositivo teria de ser dispositivo dedicado, com ligações apenas entre os livros que guarda: um dispositivo electrónico tipo kindle ou kobos – bem mais económico do que um portátil ou tablet convencional – que simula o manuseamento de um livro em papel, permite sublinhar e anotar à mão, e traz à leitura o conforto que um computador portátil não consegue oferecer[10]. Quer isto dizer que podemos dispensar o livro em papel? Claro que não. Quer dizer apenas que, nas condições descritas, o manual escolar pode ser digital. A partir de que idade? Até ver – parafraseando um antigo ministro da nossa praça – com as crianças pequenas, “jamais”[11]. O que não quer dizer que os ecrãs não possam frequentar as salas de aula deste nível de ensino, com conta peso e medida, debaixo do controlo apertado do professor. Porque, retomando a metáfora, «há momentos em que a fala é fundamental e as canetas estão paradas».
E no que se refere à escrita? Papel e lápis, caneta ou esferográfica, desde que começa até que acaba a escolaridade. Teclado?... Sim, para passar a limpo e multiplicar um texto que queremos partilhar; para editar um jornal da turma ou da escola, ou mesmo um blog.
Na aprendizagem da escrita, a escrita à mão é escrita privilegiada, que antecede sempre a «escrita teclada»: só passa para o processador de texto, um texto que passou pela mão. A escrita à mão é fundamental para ajudar a pensar – mesmo um escrevente competente, que escreve directamente num teclado, tem momentos em que recorre à escrita à mão para «desenhar» aquela frase, que não há meio de ganhar forma[12].
[1] Curioso também – ou talvez não – é no facebook que o facebook é mais contestado!
[2] Quem não se lembra da cruzada que o ex-ministro da educação Nuno Crato moveu contra a máquina de calcular, nas escolas do 1º. Ciclo, sob o pretexto de que o seu uso desviava as crianças do estudo da tabuada.
[3] Não somos apenas nós que interagimos com elas: elas mesmo parecem interagir connosco.
[4] Que não é, necessariamente, o mesmo que dizer do mais fácil para o mais difícil.
[5] Philippe Meirieu, Comment aider nos enfants à réussir. À l’école, dans leur vie, pour le monde. Bayard, Montruge, 2015.
[6] E se a proibição for assumida por um poder central, sem rosto, como pretende o “Movimento Menos Ecrãs”, tanto melhor.
[7] Três condições relativas ao acesso a programas de televisão pelas crianças (aqui alargado a qualquer tipo de ecrã), que tomo de empréstimo de Philippe Meirieu (idem 2015).
[8] A meu ver bem mais controlado do que a casa dos alunos, onde grande parte das quais tem o seu espaço, e no qual a utilização do ecrã se faz, tantas vezes, em «roda livre». Depois, sejamos honestos, «um pai que verifica a toda a hora as suas mensagens, inclusive durante as refeições, dificilmente consegue exigir que os seus filhos não fiquem agarrados ao tlm o tempo todo» (Philippe Meirieu, idem 2015).
[9] António Nunes, Computadores na escola, TSF/RTP2, Novembro 2012.
[10] Simula – argumenta Michel Desmurget – mas não responde como responde um livro em papel. Por exemplo: enquanto o e-book vai buscar a sua forma ao dispositivo que o acolhe, cada livro tem a sua forma, com peso e espessura – que só as páginas em papel lhe podem dar – fronteiras físicas tangíveis, que fazem dele o objecto que é, e que pode ser apreciado enquanto tal. Daqui as cautelas a ter com as crianças mais pequenas, com quem o desenvolvimento da relação afectiva com o abjecto é importantíssima. Mas já todos sabemos que não é com o manual escolar que esta relação se desenvolve.
[11] Neste nível de ensino, acho até que o manual escolar não faria falta nenhuma, desde que cada sala de aula tivesse ao seu dispor uma pequena biblioteca, com livros e outros materiais (guiões e fichas de trabalho, podendo acolher dispositivos digitais, de uso partilhado), que cobrisse todas as áreas do currículo.
[12] Daqui não compreender esta insistência das provas on-line na disciplina de português, principalmente com as crianças mais pequenas.