Dos conflitos que o digital provoca

Uma discussão sem fim à vista!


A maioria daqueles que escrevem sobre os efei­tos do digital no comporta­mento dos jovens, em geral, e na aprendizagem escolar, em particular, vêm do campo da psicologia (social, clínica, ou da educação e de ou­tras que mais houver) e das neurociências, a que se juntam jornalistas e co­mentadores de todo o tipo, que prescre­vem, in­variavelmente, o mesmo conse­lho: afastar as cri­anças dos ecrãs, seja ele o ecrã de um computa­dor, smartphone ou tablet, te­levisão ou mesmo dispositivos dedicados à leitura de livros di­gi­tais. Apenas o ecrã de uso colectivo de uma sala de cinema – não «pilotá­vel» pelos usuá­rios – parece não fazer parte da lista.

Os pedagogos – vá lá saber-se porquê – rara­mente en­tram no debate. E quando entram, no meio de tanto ru­ído, a sua voz mal se ouve, e a pedagogia pa­rece ficar ausente. Talvez porque o seu discurso, que vem da ex­peri­ência de vida (nas escolas e não só), não sendo car­regado com a força da pa­lavra «cientí­fica», não lhe per­mite frequentar a «piscina dos grandes», do campo me­diático. E isto apesar da idade maior do saber (fazer) que repro­duz, e que se perde no tempo!

Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço, é um conselho popular bem presente no de­bate. Um con­selho de efeitos muito incertos, até porque, como diz outra máxima popular, pa­la­vras leva-as o vento – Não deixa de ser curioso que a maior parte das reacções e manifestos contra os ecrãs nos cheguem, precisa­mente, através de pla­ta­formas, às quais só com um ecrã é pos­sível ace­der[1].

A relação da escola com a tecnologia nunca es­teve to­talmente isenta de polémicas e conflitos[2]. E hoje, as no­vas tecnologias digitais, com a mul­ti­plicação de ecrãs a invadir o quotidiano das crian­ças, a abrir ou­tras janelas, – infinita­mente mais se­dutoras e mais difíceis de con­tro­lar[3] – que afec­tam a sua percepção do mundo e, desde logo, o modo como acedem ao co­nhe­cimento, os confli­tos agu­dizam-se: «Antiga­mente os livros exigiam uma abordagem li­near, hoje-em-dia exploramos os con­teú­dos atra­vés de um sistema arbores­cente de liga­ções hi­per­textuais que podem enco­rajar-nos a va­guear em vez de aprofundar um as­sunto. (...) E mesmo que a aqui­si­ção de conhe­ci­mentos pudesse ser afec­tada pelo té­dio, desis­tência ou distracção, estava sujeita a uma “or­dem da razão” (...): do mais sim­ples para o mais com­plexo[4]. Hoje a exploração faz-se através de um sis­tema de rico­chetes per­ma­nentes, deixado em grande parte à inicia­tiva do uti­lizador»[5], que lhe dá uma falsa sensação de con­trolo do processo de ex­ploração. Afastar as crian­ças dos ecrãs se­ria, neste sentido, a conclu­são lógica. E, no en­tanto…

Tratemos os ecrãs pelo que são: instru­men­tos cujo valor de­pende do seu (ab)uso. Então, nem pro­i­bi­ção nem afasta­mento, mas controlo – palavra que deveria ser proclamada palavra de ordem. Mas é mais fá­cil proibir[6]. Até porque a proibição dis­pensa-nos do trabalho de pensar soluções, inclu­sive com as nossas crianças e jo­vens, que os ajudem a man­ter uma «relação» saudável com estes dispo­siti­vos.

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Nenhuma utilização de um ecrã é tóxica, para uma cri­ança, desde que se respeitem três condi­ções: (1) que a tarefa ou o con­teúdo que o convoca seja es­colhido, pre­vi­amente, em conjunto com um adulto responsá­vel, (2) que seja visto com ..., (3) que seja ob­jecto de discus­são posterior[7]... Con­dições difí­ceis de seguir e que só num espaço es­truturado e con­trolado é possível aco­lher: uma sala de aula, por exem­plo[8].

É fundamental aprender a usar uma ferramenta, qual­quer fer­ra­menta – inclusive os neurónios – de acordo com a tarefa projectada: nin­guém usa um martelo para fixar um parafuso; da mesma forma a máquina de cal­cular não é usada na sala de aula, para dispensar os alu­nos do esforço de «fazer fun­cionar os neurónios», num cálculo mental, ou no trabalho de memorizar a tabuada. Dir-me-ão que, para tal, seria neces­sário afastar os alu­nos do uso da máquina de cal­cular. E, no entanto, ela pode ser aqui bem útil: co­nheço professores do 1º. Ciclo que introduziram a máquina de calcular em jogos de cál­culo, onde as crianças são mobilizadas (e se di­vertem) a ser mais rápidas do que ela – nestas tur­mas a memori­zação da tabuada inscreveu-se neste jogo, com algumas crianças a ir além das ta­buadas de 1 a 10.

Como diz António Nunes, «há momentos em que a fala é fundamental e as ca­netas estão paradas[9]». Diria en­tão, tomando esta citação como metáfora de toda a or­ganização da aprendizagem, que se o objec­tivo de uma dada actividade for levar os alu­nos a planear os pas­sos que le­vam à resolução de um problema, não vejo por­que não en­siná-los a projectar e a escrever a ex­pressão nu­mérica que aponta a sua solução e a transpô-la de­pois para a má­quina de calcular, folha de calculo – ou qualquer outra apli­cação de acordo com a com­plexi­dade da tarefa e a idade do aluno – e confir­mar o re­sul­tado.

Claro que sei que uma máquina de calcular não é um smartphone, e que não consta que alguma vez uma cri­ança tenha sido vista a brincar com ela no recreio, como é vista com os ditos dispositivos “in­teligentes”. Daqui ser sensível ao argumento que defende que se afaste as crianças do smartphone no recreio – lugar difícil, ou mesmo impossível de controlar, onde o seu uso pode ser problemático – mas na condição de que a medida seja discutida com os alunos, para que possa ser com­preen­dida e acolhida por todos.

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E eis que a cruzada contra a tecnologia – não lhe bas­tando o smartphone como alvo – chega aos ma­nuais es­colares em suporte digital. Porquê? Como em qualquer cruzada, porque sim. Por mim até aca­bava com estes manuais, também porque sim. Até porque manual esco­lar é aquela coisa a que recorremos sem a expectativa de que algo nos surpreenda. A não ser que…

Voltemos atrás, a Philippe Meirieu, e à exploração «de con­teúdos atra­vés de um sistema arborescen­te de liga­ções hiper­textuais». Ora, é precisa­mente integrado numa estrutura deste tipo, que vejo um manual escolar: um dispositivo que su­porta os con­teú­dos de todas as disciplinas, com pontes (hi­perli­gações) entre eles, sem­pre que tal o justifique: um conteúdo de matemática – o teo­rema de Pitágoras, por exemplo – a apontar para um conteúdo de his­tória; o manual de leitura, com os excertos dos tex­tos a apontarem para as obras comple­tas... E para evitar o risco de «vaguear, em vez de apro­fun­dar um assunto», consequência daquela exploração, feita através de um «sistema em ricochetes per­ma­nen­tes, deixado à iniciativa do utilizador», de que fala Phili­ppe Meirieu, este dispo­si­tivo teria de ser disposi­tivo de­dicado, com liga­ções apenas entre os livros que guarda: um dispo­sitivo electrónico tipo kindle ou kobos – bem mais econó­mico do que um portátil ou tablet con­venci­onal – que simula o ma­nusea­mento de um livro em pa­pel, permite subli­nhar e anotar à mão, e traz à leitura o conforto que um computador portátil não consegue oferecer[10]. Quer isto di­zer que podemos dispensar o li­vro em papel? Claro que não. Quer dizer apenas que, nas condições des­critas, o manual escolar pode ser di­gi­tal. A partir de que idade? Até ver – parafraseando um an­tigo mi­nistro da nossa praça – com as crianças peque­nas, “jamais”[11]. O que não quer dizer que os ecrãs não possam fre­quentar as salas de aula deste nível de en­sino, com conta peso e me­dida, debaixo do controlo apertado do profes­sor. Porque, retomando a metáfora, «há momen­tos em que a fala é fundamental e as cane­tas estão pa­radas».

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E no que se refere à escrita? Papel e lápis, caneta ou es­fe­rográfica, desde que começa até que acaba a escola­ri­dade. Teclado?... Sim, para passar a limpo e multiplicar um texto que queremos partilhar; para editar um jornal da turma ou da escola, ou mesmo um blog.

Na aprendi­zagem da escrita, a escrita à mão é escrita privilegiada, que antecede sempre a «es­crita teclada»: só passa para o processador de texto, um texto que pas­sou pela mão. A escrita à mão é fundamen­tal para aju­dar a pensar – mesmo um escrevente competente, que escreve direc­tamente num teclado, tem momentos em que recorre à escrita à mão para «desenhar» aquela frase, que não há meio de ganhar forma[12].


[1] Curioso também – ou talvez não – é no facebook que o fa­ce­book é mais contestado!

[2]  Quem não se lembra da cruzada que o ex-ministro da edu­cação Nuno Crato moveu contra a máquina de calcular, nas escolas do 1º. Ciclo, sob o pretexto de que o seu uso desviava as crianças do estudo da tabuada.

[3] Não somos apenas nós que interagimos com elas: elas mesmo parecem interagir connosco.

[4] Que não é, necessariamente, o mesmo que dizer do mais fácil para o mais difícil.

[5] Philippe Meirieu, Comment aider nos enfants à réussir. À l’école, dans leur vie, pour le monde. Bayard, Montruge, 2015.

[6] E se a proibição for assumida por um poder central, sem rosto, como pretende o “Movi­mento Menos Ecrãs”, tanto melhor.

[7] Três condições relativas ao acesso a programas de televi­são pe­las crianças (aqui alargado a qualquer tipo de ecrã), que tomo de empréstimo de Philippe Meirieu (idem 2015).

[8] A meu ver bem mais controlado do que a casa dos alunos, onde grande parte das quais tem o seu espaço, e no qual a utilização do ecrã se faz, tantas vezes, em «roda livre». Depois, se­jamos ho­nestos, «um pai que verifica a toda a hora as suas mensagens, inclusive durante as refeições, dificil­mente con­segue exigir que os seus filhos não fiquem agar­rados ao tlm o tempo todo» (Phili­ppe Meirieu, idem 2015).

[9] António Nunes, Computadores na escola, TSF/RTP2, No­vembro 2012.

[10] Simula – argumenta Michel Desmurget – mas não responde como responde um livro em papel. Por exemplo: enquanto o e-book vai buscar a sua forma ao dispositivo que o acolhe, cada livro tem a sua forma, com peso e espessura – que só as páginas em papel lhe podem dar – fronteiras físicas tangíveis, que fazem dele o objecto que é, e que pode ser apreciado enquanto tal. Da­qui as cautelas a ter com as crianças mais pequenas, com quem o desenvolvimento da relação afectiva com o abjecto é impor­tantíssima. Mas já todos sabemos que não é com o manual esco­lar que esta relação se desenvolve.

[11] Neste nível de ensino, acho até que o manual escolar não faria falta nenhuma, desde que cada sala de aula tivesse ao seu dispor uma pequena biblioteca, com livros e outros materiais (guiões e fichas de trabalho, podendo acolher dispositivos digitais, de uso partilhado), que cobrisse todas as áreas do currículo.

[12] Daqui não compreender esta insistência das provas on-line na disciplina de português, principalmente com as crianças mais pe­quenas.