Dos conflitos que o digital provoca

Uma discussão sem fim à vista!


A maioria daqueles que escrevem sobre os efei­tos do digital no comporta­mento dos jovens, em geral, e na aprendizagem escolar, em particular, vêm do campo da psicologia (social, clínica, ou da educação e de ou­tras que mais houver) e das neurociências, a que se juntam jornalistas e co­mentadores de todo o tipo, que prescre­vem, in­variavelmente, o mesmo conse­lho: afastar as cri­anças dos ecrãs, seja ele o ecrã de um computa­dor, smartphone ou tablet, te­levisão ou mesmo dispositivos dedicados à leitura de livros di­gi­tais. Apenas o ecrã de uso colectivo de uma sala de cinema – não «pilotá­vel» pelos usuá­rios – parece não fazer parte da lista.

Os pedagogos – vá lá saber-se porquê – rara­mente en­tram no debate. E quando entram, no meio de tanto ru­ído, a sua voz mal se ouve, e a pedagogia pa­rece ficar ausente. Talvez porque o seu discurso, que vem da ex­peri­ência de vida (nas escolas e não só), não sendo car­regado com a força da pa­lavra «cientí­fica», não lhe per­mite frequentar a «piscina dos grandes», do campo me­diático. E isto apesar da idade maior do saber (fazer) que repro­duz, e que se perde no tempo!

Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço, é um conselho popular bem presente no de­bate. Um con­selho de efeitos muito incertos, até porque, como diz outra máxima popular, pa­la­vras leva-as o vento – Não deixa de ser curioso que a maior parte das reacções e manifestos contra os ecrãs nos cheguem, precisa­mente, através de pla­ta­formas, às quais só com um ecrã é pos­sível ace­der[1].

A relação da escola com a tecnologia nunca es­teve to­talmente isenta de polémicas e conflitos[2]. E hoje, as no­vas tecnologias digitais, com a mul­ti­plicação de ecrãs a invadir o quotidiano das crian­ças, a abrir ou­tras janelas, – infinita­mente mais se­dutoras e mais difíceis de con­tro­lar[3] – que afec­tam a sua percepção do mundo e, desde logo, o modo como acedem ao co­nhe­cimento, os confli­tos agu­dizam-se: «Antiga­mente os livros exigiam uma abordagem li­near, hoje-em-dia exploramos os con­teú­dos atra­vés de um sistema arbores­cente de liga­ções hi­per­textuais que podem enco­rajar-nos a va­guear em vez de aprofundar um as­sunto. (...) E mesmo que a aqui­si­ção de conhe­ci­mentos pudesse ser afec­tada pelo té­dio, desis­tência ou distracção, estava sujeita a uma “or­dem da razão” (...): do mais sim­ples para o mais com­plexo[4]. Hoje a exploração faz-se através de um sis­tema de rico­chetes per­ma­nentes, deixado em grande parte à inicia­tiva do uti­lizador»[5], que lhe dá uma falsa sensação de con­trolo do processo de ex­ploração. Afastar as crian­ças dos ecrãs se­ria, neste sentido, a conclu­são lógica. E, no en­tanto…

Tratemos os ecrãs pelo que são: instru­men­tos cujo valor de­pende do seu (ab)uso. Então, nem pro­i­bi­ção nem afasta­mento, mas controlo – palavra que deveria ser proclamada palavra de ordem. Mas é mais fá­cil proibir[6]. Até porque a proibição dis­pensa-nos do trabalho de pensar soluções, inclu­sive com as nossas crianças e jo­vens, que os ajudem a man­ter uma «relação» saudável com estes dispo­siti­vos.

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Nenhuma utilização de um ecrã é tóxica, para uma cri­ança, desde que se respeitem três condi­ções: (1) que a tarefa ou o con­teúdo que o convoca seja es­colhido, pre­vi­amente, em conjunto com um adulto responsá­vel, (2) que seja visto com ..., (3) que seja ob­jecto de discus­são posterior[7]... Con­dições difí­ceis de seguir e que só num espaço es­truturado e con­trolado é possível aco­lher: uma sala de aula, por exem­plo[8].

É fundamental aprender a usar uma ferramenta, qual­quer fer­ra­menta – inclusive os neurónios – de acordo com a tarefa projectada: nin­guém usa um martelo para fixar um parafuso; da mesma forma a máquina de cal­cular não é usada na sala de aula, para dispensar os alu­nos do esforço de «fazer fun­cionar os neurónios», num cálculo mental, ou no trabalho de memorizar a tabuada. Dir-me-ão que, para tal, seria neces­sário afastar os alu­nos do uso da máquina de cal­cular. E, no entanto, ela pode ser aqui bem útil: co­nheço professores do 1º. Ciclo que introduziram a máquina de calcular em jogos de cál­culo, onde as crianças são mobilizadas (e se di­vertem) a ser mais rápidas do que ela – nestas tur­mas a memori­zação da tabuada inscreveu-se neste jogo, com algumas crianças a ir além das ta­buadas de 1 a 10.

Como diz António Nunes, «há momentos em que a fala é fundamental e as ca­netas estão paradas[9]». Diria en­tão, tomando esta citação como metáfora de toda a or­ganização da aprendizagem, que se o objec­tivo de uma dada actividade for levar os alu­nos a planear os pas­sos que le­vam à resolução de um problema, não vejo por­que não en­siná-los a projectar e a escrever a ex­pressão nu­mérica que aponta a sua solução e a transpô-la de­pois para a má­quina de calcular, folha de calculo – ou qualquer outra apli­cação de acordo com a com­plexi­dade da tarefa e a idade do aluno – e confir­mar o re­sul­tado.

Claro que sei que uma máquina de calcular não é um smartphone, e que não consta que alguma vez uma cri­ança tenha sido vista a brincar com ela no recreio, como é vista com os ditos dispositivos “in­teligentes”. Daqui ser sensível ao argumento que defende que se afaste as crianças do smartphone no recreio – lugar difícil, ou mesmo impossível de controlar, onde o seu uso pode ser problemático – mas na condição de que a medida seja discutida com os alunos, para que possa ser com­preen­dida e acolhida por todos.

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E eis que a cruzada contra a tecnologia – não lhe bas­tando o smartphone como alvo – chega aos ma­nuais es­colares em suporte digital. Porquê? Como em qualquer cruzada, porque sim. Por mim até aca­bava com estes manuais, também porque sim. Até porque manual esco­lar é aquela coisa a que recorremos sem a expectativa de que algo nos surpreenda. A não ser que…

Voltemos atrás, a Philippe Meirieu, e à exploração «de con­teúdos atra­vés de um sistema arborescen­te de liga­ções hiper­textuais». Ora, é precisa­mente integrado numa estrutura deste tipo, que vejo um manual escolar: um dispositivo que su­porta os con­teú­dos de todas as disciplinas, com pontes (hi­perli­gações) entre eles, sem­pre que tal o justifique: um conteúdo de matemática – o teo­rema de Pitágoras, por exemplo – a apontar para um conteúdo de his­tória; o manual de leitura, com os excertos dos tex­tos a apontarem para as obras comple­tas... E para evitar o risco de «vaguear, em vez de apro­fun­dar um assunto», consequência daquela exploração, feita através de um «sistema em ricochetes per­ma­nen­tes, deixado à iniciativa do utilizador», de que fala Phili­ppe Meirieu, este dispo­si­tivo teria de ser disposi­tivo de­dicado, com liga­ções apenas entre os livros que guarda: um dispo­sitivo electrónico tipo kindle ou kobos – bem mais econó­mico do que um portátil ou tablet con­venci­onal – que simula o ma­nusea­mento de um livro em pa­pel, permite subli­nhar e anotar à mão, e traz à leitura o conforto que um computador portátil não consegue oferecer[10]. Quer isto di­zer que podemos dispensar o li­vro em papel? Claro que não. Quer dizer apenas que, nas condições des­critas, o manual escolar pode ser di­gi­tal. A partir de que idade? Até ver – parafraseando um an­tigo mi­nistro da nossa praça – com as crianças peque­nas, “jamais”[11]. O que não quer dizer que os ecrãs não possam fre­quentar as salas de aula deste nível de en­sino, com conta peso e me­dida, debaixo do controlo apertado do profes­sor. Porque, retomando a metáfora, «há momen­tos em que a fala é fundamental e as cane­tas estão pa­radas».

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E no que se refere à escrita? Papel e lápis, caneta ou es­fe­rográfica, desde que começa até que acaba a escola­ri­dade. Teclado?... Sim, para passar a limpo e multiplicar um texto que queremos partilhar; para editar um jornal da turma ou da escola, ou mesmo um blog.

Na aprendi­zagem da escrita, a escrita à mão é escrita privilegiada, que antecede sempre a «es­crita teclada»: só passa para o processador de texto, um texto que pas­sou pela mão. A escrita à mão é fundamen­tal para aju­dar a pensar – mesmo um escrevente competente, que escreve direc­tamente num teclado, tem momentos em que recorre à escrita à mão para «desenhar» aquela frase, que não há meio de ganhar forma[12].


[1] Curioso também – ou talvez não – é no facebook que o fa­ce­book é mais contestado!

[2]  Quem não se lembra da cruzada que o ex-ministro da edu­cação Nuno Crato moveu contra a máquina de calcular, nas escolas do 1º. Ciclo, sob o pretexto de que o seu uso desviava as crianças do estudo da tabuada.

[3] Não somos apenas nós que interagimos com elas: elas mesmo parecem interagir connosco.

[4] Que não é, necessariamente, o mesmo que dizer do mais fácil para o mais difícil.

[5] Philippe Meirieu, Comment aider nos enfants à réussir. À l’école, dans leur vie, pour le monde. Bayard, Montruge, 2015.

[6] E se a proibição for assumida por um poder central, sem rosto, como pretende o “Movi­mento Menos Ecrãs”, tanto melhor.

[7] Três condições relativas ao acesso a programas de televi­são pe­las crianças (aqui alargado a qualquer tipo de ecrã), que tomo de empréstimo de Philippe Meirieu (idem 2015).

[8] A meu ver bem mais controlado do que a casa dos alunos, onde grande parte das quais tem o seu espaço, e no qual a utilização do ecrã se faz, tantas vezes, em «roda livre». Depois, se­jamos ho­nestos, «um pai que verifica a toda a hora as suas mensagens, inclusive durante as refeições, dificil­mente con­segue exigir que os seus filhos não fiquem agar­rados ao tlm o tempo todo» (Phili­ppe Meirieu, idem 2015).

[9] António Nunes, Computadores na escola, TSF/RTP2, No­vembro 2012.

[10] Simula – argumenta Michel Desmurget – mas não responde como responde um livro em papel. Por exemplo: enquanto o e-book vai buscar a sua forma ao dispositivo que o acolhe, cada livro tem a sua forma, com peso e espessura – que só as páginas em papel lhe podem dar – fronteiras físicas tangíveis, que fazem dele o objecto que é, e que pode ser apreciado enquanto tal. Da­qui as cautelas a ter com as crianças mais pequenas, com quem o desenvolvimento da relação afectiva com o abjecto é impor­tantíssima. Mas já todos sabemos que não é com o manual esco­lar que esta relação se desenvolve.

[11] Neste nível de ensino, acho até que o manual escolar não faria falta nenhuma, desde que cada sala de aula tivesse ao seu dispor uma pequena biblioteca, com livros e outros materiais (guiões e fichas de trabalho, podendo acolher dispositivos digitais, de uso partilhado), que cobrisse todas as áreas do currículo.

[12] Daqui não compreender esta insistência das provas on-line na disciplina de português, principalmente com as crianças mais pe­quenas.

Gostar de ler: privilegiar o papel sem diabolizar o pixel

 Desmurget acha que o prazer de ler não se dá bem com o pixel, que precisa do papel para se impor. É um prazer que se desenvolve mal com ebooks, mesmo que suportados por leitores digitais dedicados, como o kindle ou o kobo: entre o leitor e o texto não existe aquela relação com o livro-objecto, que se constrói através de um livro impresso em papel. Uma experiência que uma criança começa a adquirir, quando lhe oferecemos livros (de pano ou cartão), ou revistas que ela manuseia, como um “brinquedo” (e destrói em minutos), muito antes de saber o que é um livro, na convicção de que, quem desenvolve uma relação positiva com o livro-objecto, desenvolverá idêntica relação com o texto.

E, no entanto, gostar de livros, por estranho que pareça, não significa gostar de ler. Há quem goste de livros e não se sinta entusiasmado pela leitura: “Não sou leitora – disse a professora Isa, lembram-se? >>> – Nunca fui muito de ler livros. Mas sempre adorei tê-los.” Já quem não gosta de livros, com toda a certeza não gosta de ler. O que não quer dizer que não leia; lê, claro, por necessidade. E será que, quem gosta ler, gosta de ler em qualquer formato?

Os dados fornecidos pelo autor de "Cretinos digitais", apontam para a superioridade do papel sobre o pixel. E são tão esmagadores que não há como contrariá-los. Mas o meu ponto é outro. Não estou interessado no confronto pixel versus papel: procuro antes os contextos de uma coabitação possível. Até porque "o digital veio para ficar e ficou mesmo".

Pela parte que me toca, con­fesso, são mais os "livros" que compro, hoje, em suporte digital do que em papel  escrevi há tempos neste sítio >>> . Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua lei­tura, com o mesmo prazer ou desprazer – que só de­pende do conte­údo –, excepto no ecrã de um pc. Claro que, dir-me-ão, sentes o mesmo prazer a ler ebooks, porque passaste pelo livro em papel, antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que trans­por­tas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro.

De facto, quando pego num leitor de ebooks, não sendo um livro que agarro, ainda assim é um objecto que carrega livros, que seguro nas mãos. Agarro-o com a intenção de ler um dos muitos “livros” que ele guarda. Procuro um livro para ler! E, ao encontrá-lo, é mesmo um livro que leio. O objecto está nas minhas mãos, percorro as suas páginas, como percorro as páginas em papel, numa experiência quase idêntica. Idêntica mas não igual, é certo. Efeito daquela representação que tenho do livro, que mantenho – porque a vivi –quando folheio as páginas digitais de um ebook? Certamente que sim. Daqui o imperativo de proporcionar às nossas crianças as experiências que farão com que ela, ao ler um ebook, sinta que tem nas suas mãos um livro. Como? Privilegiando o papel sem diabolizar o pixel! Porque se é certo, que a relação com o livro-objecto, só com o livro, mesmo, é possível desenvolver, não é menos certo, que posso partilhar com ela a leitura de um ebook. Conheço pais que o fazem com os seus filhos. Só não lhe passam o leitor para as mãos, sem supervisão, da mesma forma que lhe passam um livro. 

Distinguir os livros, que lemos com prazer, das fontes de informação, que se consultam por obrigação, é fundamental, neste processo. Nos primeiros, coloco a literatura – em todas as suas dimensões –, os ensaios, as obras de cultura, da história às artes, da filosofia às ciências... Nos segundos, coloco os jornais e revistas, os sítios da web,  o manual escolar – livro-repelente, que não é bem livro – aquela coisa a que recorremos, sem a expectativa de que algo nos surpreenda, e que, por isso mesmo, poderia muito bem ser digital.

Quando os estudos apresentados por Michel Desmurget dizem que a maioria dos leitores competentes "acham que o suporte em papel é preferível, nomeadamente, para leituras longas e exigentes, porque favorece a concentração", nada é dito sobre o aparelhos que suportam o texto, presentes no estudo, nem da experiência do leitor no uso de aparelhos dedicados à leitura  Eu li o livro de Michel Desmurget no kindle, e não me desconcentrei mais do que me teria desconcentrado se o tivesse lido em papel *–. Creio, aliás, que serão muito poucos a ter acesso a leitores dedicados à leitura de textos, demasiado caros, tendo em conta que só servem, exclusivamente, a leitura de livros digitais. 

Não desvalorizo as preocupações que o digital coloca. Mas recuso enveredar na histeria do "isto ou aquilo", num "ou" que exclui. Em pedagogia o "ou" é inclusivo. É isto ou aquilo, numa alternância que não exclui: isto agora, neste lugar, ou aquilo noutro tempo, no mesmo ou noutro espaço.

Claro que ficam preocupações a debater (que esperamos abordar em breve neste sítio). Mas essas passam ao lado da leitura e do prazer do texto, que nos obrigamos – porque devemos – a promover.

Ter na devida conta os dados que a ciência nos oferece, é fundamental. Mas com o cuidado de não correr a traduzi-los numa prática. Assim sem mais!... Até porque – repito – "o digital veio para ficar e ficou mesmo"


* O livro de Michel Desmurget, "Faite-les lire! Pour em finir avec le crétin digital", foi comprado em ebook, no inicio do ano, antes da edição portuguesa, publicada em Junho, com o título "Ponham-nos a ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais", da Contraponto. Quando o texto é escrito noutra língua que não a portuguesa (francês, inglês ou espanhol), prefiro a edição em ebook, quando existe. A disponibilidade dos tradutores digitais inteligentes, ajudam a resolver, rapidamente, as dúvidas de tradução localizadas, quando afectam a compreensão do todo.


Tecnologia Digital: Extensão ou substituição? Mais outras interrogações e a pedagogia no horizonte

 EM 05.01.2024 

Tema em desenvolvimento, iniciado a partir das interrogações de Isabel Calado, que tomamos a liberdade de fazer nossas, saídas da 75ª "Tertúlia Inquietações Pedagógicas".

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DA VIDA DEPENDENTE DA TECNOLOGIA

Quando me interrogo sobre a importância que os dispositivos digitais têm na minha vida, procuro convencer-me de que têm uma importância limitada, de que posso viver sem eles, desde que tenha acesso a livros, jornais, correio..., aos dispositivos tradicionais que me ligam ao mundo. Não sei se será exactamente assim! Embora convencido de que não estou viciado em tecnologia, e de não precisar de me sujeitar a um longo processo de desintoxicação, estou certo de que um eventual afastamento de dispositivos digitais por longos períodos de tempo, exigir-me-ia um grande esforço de adaptação.

A tecnologia digital foi entrando na minha vida naturalmente: a máquina de calcular primeiro; depois a computador pessoal, com processadores de texto, folhas de cálculo..., a ligação à internet e tudo mais que a internet ofereceu. Tudo incorporado sem esforço: digamos que a tecnologia impôs-se sem convite; a porta estava aberta e ela, simplesmente, entrou. E ficou.

Sem disso me aperceber, algumas plataformas digitais tornaram-se, lentamente, lugares imprescindíveis de encontro, fóruns impossíveis fora dos espaços digitais: é outra a diversidade de encontros que os espaços digitais proporcionam, e acho que já não é possível dispensá-los a favor dos espaços físicos que demoram a reencontrar-se, com a força dos tempos pré-pandémicos: a coabitação ente os diferentes espaços é hoje praticamente obrigatória. Depois, para ajudar à festa, são espaços que viajam connosco em smartphones e outros dispositivos com os seus dados móveis, quais 
próteses, quase extensões do corpo [Óscar Lopes diria, talvez, que "mais uma veza mão cresceu"*]
. Podia viver sem tecnologia? Claro que podia. Mas esta é a resposta de alguém que cresceu num mundo analógico, para quem o papel e a caneta continuam a ser instrumentos importantíssimos de trabalho e que, pelo lugar de onde vem, com mais ou menos esforço esforço, reaprenderia a viver sem o 
digital.

Vem isto a propósito das interrogações lançadas na 75ª Tertúlia Inquietações Pedagógicas. Embora a minha preocupação, como professor, no que diz respeito à tecnologia digital, tenha ido no sentido do uso que lhe poderia dar como instrumento auxiliar do meu trabalho, de tirar o melhor partido dela, no dia-a-dia da sala de aula, hoje acho que acompanharia Isabel Calado, na sua preocupação, e estaria muito mais preocupado com o que a tecnologia pode fazer connosco, e não tanto com o que nós podemos fazer com ela

Trata-se, sem recusar o conforto que a tecnologia traz às nossas vidas, de pensar o seu uso de um modo que não nos faça seus escravos, que nos paralisa quando nos afastamos dela. É que, à medida que ela se vai tornando mais poderosa, temos vindo a deixar que nos seduza ao ponto de lhe delegarmos funções que têm sido só nossas: deixamo-nos substituir por ela, levados pela confiança cega na infalibilidade da técnica! Cuidado - avisa António Dias Figueiredo - com o que delegamos na tecnologia! E elege, como prioridade, a aposta naquele saber que distingue o professor como profissional da educação: a PEDAGOGIA, a prática PEDAGÓGICA, que não é, nem será, coisa de máquina, mesmo que apoiada nas ciências da "inteligência artificial", por mais "inteligente" que seja.

Daniel Lousada


Sobre os desafios que a aplicação ChatGPT e outras aplicações de inteligência artificial nos colocam


Duas versões lado a lado: a versão original em francês, e a versão portuguesa, trabalhada sobre um rascunho produzido pelo Chat GPT, antecedida de um apontamento [nota prévia], que dá conta da atenção que deve merecer-nos o uso que crianças e jovens fazem desta aplicação. Fica o convite à leitura.
 
Para aceder ao texto em pdf, com as duas versões, seguir a ligação que se segue:
"Chat GPT mata o desejo de aprender" - versão PDF >>>


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NOTA PRÉVIA - Daniel Lousada

Como utilizador de tecnologias digitais, fui seduzido pelo Chat GPT e outras aplicações do mesmo género. Como não ser seduzido? Em segundos ele copia, de uma língua para a língua que eu pretendo, uma quantidade de páginas que me levariam largos minutos a copiar. Copia mas não traduz, dir-me-ão. Mas, não sendo tradução, é rascunho sobre o qual posso traba­lhar num trabalho de texto, que vou confrontando com o texto original. Não dispensa, portanto, o traba­lho de análise que só quem conhece minimamente as línguas em confronto é capaz de fazer, e que lhe permite atrever-se na tradu­ção. A mim, na escrita desta versão, não me dispensou do uso dos dicionários de francês, francês-português e do dicionário de sinónimos. Como não dispensa nin­guém da informação prévia que permite a pergunta sobre o assunto que a motiva. Se não sabes porque é que perguntas?”, diria João dos Santos.*

Como rascunho, a escrita que esta aplicação de inteligência artifi­cial oferece não é, assim, texto acabado, longe disso. E mesmo que as suas traduções fossem tecnicamente perfeitas (algo de que estão longe), seriam a “perfeição da máquina”, semelhante à perfei­ção da máquina do afinador de pianos: passado pela má­quina, o piano fica afinado; a afinação de cada nota está lá no lugar certo; mas, no fim, há qualquer coisa a faltar: faltam aquelas “imperfeições" que lhe dão o “tempera­mento” que o distingue como “aquele piano”. En­tão, é a vez do ouvido do afinador de pianos entrar em acção, fazendo um ajuste mínimo aqui e outro ali, até encontrar o “temperamento” certo que não está ao al­cance de nenhuma máquina. Um temperamento que, no caso da escrita, traduzo por "sabor do texto”, aquele ca­rácter que o distingue e que, muitas vezes, nos deixa adi­vinhar a identidade do seu autor. “Por vezes, para conseguir escrever, é preciso lu­tar contra a gramática”, diz Paulo Freire. Ora, a máquina não sabe lutar contra a gra­mática: limita-se a reproduzir a gramática que o progra­mador lhe deu.

Daqui a atenção que deve merecer-nos o uso que as cri­anças e os jovens fazem deste tipo de aplicações. Mas como atender aos seus usos, se formos incapazes de re­sistir àqueles que pretendem proibir a sua entrada na sala de aula?


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Chat GPT mata o desejo de aprender - Alain Bentolila

Este texto é dedicado a todos aqueles que confundem "élévation" com "élevage” **


Querer saber não é sinónimo de querer aprender. Esta distância necessária entre saber e aprender está agora a ser posta em causa pelas redes sociais, que celebram a conivência em vez de explicitarem as diferenças, e já não convidam ao diálogo, mas fecham as pessoas numa “bolha". O ChatGPT insere-se nesta lógica de imensos perigos. Mas o perigo maior que representa para as nossas escolas não se resume à fraude que pode permitir, pois encontraremos sempre os meios técnicos para a evitar. A ameaça reside antes numa relação distorcida com o conhecimento. Como diz, e muito bem, Philippe MEIRIEU, "este robot de conversação, com a sua capacidade de dar respostas em tempo recorde, satisfaz o desejo de saber e mata o de­sejo de aprender". Afinal, para que serve fazer perguntas, para que serve tentar construir laboriosamente respostas se, com um simples clique, podemos mobilizar toda a inteligência do mundo para as trazer até nós com um esforço mínimo. Pedir a um robot de conversação que escreva uma declaração de amor, ou utili­zar a mesma ferramenta para dizer ao nosso  melhor amigo o quanto estamos tristes com a morte da sua mãe, tornar-se-á em breve um lugar-comum, e deixaremos de nos aperceber até que ponto este desprendimento apouca a nossa intenção, até que ponto enfraquece o nosso envolvimento.


Aprender a ler e saber ler

Muitas vezes, pensamos que se alguma criança, algum aluno, não lê, é porque não tem curiosidade alguma, ne­nhum desejo de saber. Isto nem sempre é verdade! Pelo contrário, é o frenesim, “a pressa da chegada”, que a leva a entrar em pânico e a bloquear. Saber antes de ter aprendido; saber sem se dar tempo para aprender; eis o que estas crianças desejam. Qualquer espera, qual­quer demora, imposta por um processo de aprendizagem laborioso, desmobiliza-as e pode, frequentemente, levá-las a uma raiva reprimida, que as paralisa. Na sua maioria, estes alunos, estas crianças, ar­dem de vontade de saber. Estão dispostos a fazer tudo para conquistá-lo, excepto esforçar-se por construir o seu próprio sentido a partir das escolhas dos outros. Saber, sim! Dar-se ao trabalho de aprender com rigor, não! O que os irrita até à exasperação é serem confrontados com uma actividade em que a informação não é mais orientada pe­los laços da confirmação imediata. Uma actividade que, como muito bem diz Serge Boimare, lhes impõe "um tempo de suspensão, um tempo de pausa para uma elabo­ração mínima, porque o que há para compreender não se dá de imediato”. Este "tempo suspenso", necessário à aprendizagem, pode provocar, junto da criança, dispersão e desordem. Ela experimenta-o como um vazio, uma falha, porque a dúvida e a incerteza são demasiado dolorosas para que ela possa estimular a actividade do pensamento. Em vez de sentir aquela ansiedade ligeira e normal, que surge naturalmente ao dar-se conta do que ainda não sabe, e que deveria encorajá-la a construir o seu próprio caminho, é invadida por uma frustração terrível, quando tem de fazer associações, ligações, numa palavra... investi­gar. Por outras palavras, é a impaciência de querer ver, como por magia, as imagens a formar-se na sua mente; é o desejo, praticamente impossível, de querer compreen­der sem ter feito nada para isso; é finalmente a recusa em conceder um prazo, por mínimo que seja, ao trabalho pelo saber, que explica a sua dificuldade, ou melhor, a sua dis­função cognitiva. Gostariam de sair do túnel sem precisarde tempo para escavar. Não é por incompetência ou preguiça que al­gumas crianças se recusam a ler. Não devemos resignar-nos a essa recusa com o pretexto de que não são "feitas da mesma massa que faz leitores", ou que as crianças de hoje gostam mais de jogos de vídeo do que de livros.... Enredadas que estão num universo onde reina a conivência, a passividade e a ambiguidade, habituaram-se a aceitar apenas textos cujo sentido lhes é amplamente conhecido de antemão. Por conseguinte, desconfiam de qualquer "aventura de compreensão" que possa impor a distância e convidar à critica e à argumentação.

O desejo de ensinar deve encontrar o desejo de aprender

Amanhã, como todos os dias, cada professor abrirá aporta da sua sala de aula, para encontrar aí cerca de vinte "filhos de alguém", alguns dos quais sem saberem exatamente por que estão ali e outros que prefeririam estar noutro lugar. Cada um deverá deixar à entrada à entrada as dúvidas que o atormentam, as suas esperanças, frequentemente frustradas, para todas as manhãs renovar o "voto do professor": Nenhum de vós sairá da sala de aula como entrou. Todos vós tereis aprendido coisas que vos são desconhecidas mas, acima de tudo, tereis compreendido coisas que mal sabeis existir, e assim sabereis pensar com mais liberdade e discernimento. Mas esta vontade magistral de formar a inteligência de cada aluno, de maneira singular, deve encontrar neles o desejo de aprender, porque, a menos que fracasse na sua função essencial, a escola não pode desinteressar-se da força que faz aproximar a mensagem da criança e das motivações que a levam a acolhê-la. São essas virtudes de curiosidade e coragem que estão hoje em perigo, e são elas que a escola e a família devem transmitir às crianças, ao mesmo tempo como um desafio e uma promessa. Pais e professores devem acompanhá-las, da pesquisa à descoberta, da regra reconhecida à regra aplicada, para que aceitem o esforço intelectual e o domínio emocional que lhes permitirão dissipar as trevas e, assim, merecer que a sua inteligência interprete livremente o conhecimento sem traí-lo. É nossa responsabilidade mostrar-lhes que o desconhecido é um desafio que devem enfrentar, aceitando que o prazer do conhecimento não é mais do que um justo retorno ao seu investimento intelectual. Ensinar as crianças a valorizar o esforço porque ele traz promessas de um maior poder sobre o mundo é, sem dúvida, a melhor defesa que podemos construir contra a tentação irresistível de se render ao CHAT GPT.

Se, como eu, acreditas que o propósito do ser humano é o desejo de descoberta, a curiosidade de compreender, é o apetite pela investigação, a alegria do intercâmbio entre seres humanos, então não te deixes encantar pelas proezas do CHATGPT, que pretende disponibilizar toda a inteligência do mundo aos teus filhos, organizada de acordo com critérios que eles desconhecem, e tratada com algoritmos aos quais eles nunca terão acesso. Em vez disso, presta atenção aos "porquê pai, porquê mãe, porquê professora?" que uma criança te dirige; como um apelo para olhar e questionar o mundo juntos. Desprezar esse apelo, enviado da inteligência de uma criança à tua inteligência, é o mesmo que dizer-lhe que as suas perguntas legítimas não valem um momento de reflexão partilhada. Na escola e em casa, devemos-lhe esse momento de suspensão, em que o adulto se diferencia da máquina, para responder com amor, como ninguém mais responderia, porque ela é o que é, e tu és o que és. Em resumo, na escola e em casa, fala uma e outra vez ainda..., ouve uma e outra vez novamente, discute, argumenta, conta histórias; e... Olha, olhos nos olhos, essa criança. Aprende a manter o seu olhar que te questiona, que às vezes te avalia e, na maioria das vezes, te implora que lhe assegures que ela não é um fardo, mas o sujeito de uma relação que não dispensas.

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A qualidade dos re­sultados obtidos com os assistentes artifici­ais inteligentes de­pende criticamen-te da qualidade da in­formação que lhes fornecemos  - a esti­mulação” (António Dias de Figueiredo, in Jornal de Letras, 29 de Novembro a 12 de De­zembro, 2023).

** Uma dedicatória cheia de ironia que se perderia numa tradução literal. Enquanto “Élévation" está relacionado com elevar ou levantar algo, "élevage" tem a ver com criação ou reprodução de animais.  Assim quem confunde “Élévation” com “élevage” não iria além da percepção que o significante lhe dá. Não seria, portanto, capaz de distinguir a acção de ajudar alguém a “elevar-se”, da acção de reprodução e criação de animais.

 

ChatGPT, uma aplicação de inteligência artificial, que não é possível ignorar, nem é sensato descartar


O maior perigo do ChatGPT não está na fraude que ele pode permitir, mas na sensação que dá de estarmos a falar com um humano e que inverte completamente o sentido da relação educacional - diz Philippe Meirieu -. Ele fornece respostas objectivas imediatas, dispensando, assim, a dinâmica do questionamento. Promove certezas que aprisionam o pensamento... Vai totalmente contra o que se espera de um professor: suscitar interrogações que libertam de preconceitos.

Philippe Meirieu, ao reconhecer a legitimidade das preocupações dos professores que temem que esta aplicação isente os seus alunos dos trabalhos de investigação e de escrita, defende (até por isso) que se traga o ChatGPT para a sala de aula, incentivando o estudante a formular perguntas de diferentes formas, para comparar respostas, confrontando-as com as respostas dos manuais e enciclopédias. De certa forma, promove-se a utilização das sugestões destes dispositivos como rascunhos, sobre os quais há que fazer todo um trabalho de identificação das proposições menos claras, deslizes semânticos, erros grosseiros até, que levam a mal entendidos que é necessário corrigir. Algo semelhante à tradução para português, realizada pelo ChatGPT, que acompanha a versão original de Philippe Meirieu, publicada pelo “Le Monde”, e que CONVIDAMOS AGORA A LER>>> 

Digital e Modernização Educativa

A propósito de "Educação, reforma do ensino e fim dos livros em papel", publicado em >>>

A utilização do digital na sala de aula, não define, por si só, a modernidade dos processos de trabalho praticados, embora haja quem defenda que instrumentos mais evoluídos possam ser factor determinante na mudança para práticas de trabalho mais eficazes.

Não é pela fraca utilização do digital na sala de aula que Portugal tem, eventualmente, uma educação do século XIX, mas porque a organização do trabalho de aprendizagem dos alunos tem evoluído muito pouco desde então. Atualizando o que Freinet e Salengros escreveram em "Modernizar a Escola" (1960), um instrumento do século XIX também é do século XXI se responder aos seus desafios [*] O livro, só por ser digital, não melhora a qualidade da aprendizagem e do ensino, se não se ensinarem os alunos (e, já agora, os professores) a tirar partido de todas as suas potencialidades. Mais ainda, se não for garantida a qualidade do digital para todos os utilizadores, qualquer que seja o seu poder económico (coisa que a pandemia revelou não ser fácil de garantir), as desigualdades tendem a aprofundar-se. Enquanto não se garantir a qualidade do digital para todos, não se metam em "guerrinhas" com o livro em papel.

Já no que diz respeito aos instrumentos de escrita, enquanto estes não permitirem uma escrita à mão igual ou superior, NÃO SE METAM COM O PAPEL. Pelo menos com as crianças do ensino básico.

Daniel Lousada

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[*] Ler a propósito, "Inovação ou o jia visto pintado com outras cores?" >>>

A Pedagogia e o Digital: ferramentas para decidir

. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que a horizontalidade das trocas que promovem não exclua a procura da verdade.

2. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o imediatismo que elas promovem não exclua  a exigência da pausa que permite a reflexão.

3. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que  a educação tenha como objectivo ajudar os alunos a ingressar no simbólico.

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É preciso fazer uma pergunta simples que, por si só, nos pode permitir identificar algumas chaves para a acção quo­tidiana, que ao mesmo tempo nos ajuda a focarmo-nos no que importa: em que condições o uso das tecnologias digi­tais nas escolas pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento?

1. A utilização das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o carácter hori­zontal das trocas que elas favorecem não exclua a procura da ver­dade. A tecnologia digital, através da Internet e de todos os instru­mentos de comunicação "em tempo real" que ela permite, modificou radicalmente o acesso à informação. Qualquer estudante, da escola primária à universidade, tem acesso instantâneo a um manancial de dados. A investiga­ção docu­mental, outrora confinada ao mundo abafado das bibliote­cas e dos centros de documentação, está agora à distância de um clique, a partir de qualquer lugar, sem re­quisitos es­peciais. Os motores de busca são consultados sis­tematica­mente e abrem uma quantidade fabulosa de docu­mentos de todos os tipos: textos digitalizados, fotografias e vídeos, textos de arquivo e peças noticiosas. Tudo isto dá a im­pres­são de que o conhecimento está a tornar-se acessível a to­dos, e que cada estudante está ao mesmo nível face ao acesso à “cultura”.

É claro que raciocinar assim é ignorar o paradoxo que está no cerne de todas as políticas culturais, já apontado por Bourdieu no seu estudo sobre os museus: o simples au­mento da oferta aumenta as desigualdades porque se apoia na procura daqueles que têm o capital simbólico, para de­se­jar apropriar-se dos bens culturais assim oferecidos. E tanto mais que, no caso da Internet, ignoramos também a natureza da "investigação" que aquela oferta permite.

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O digital veio para ficar e ficou mesmo [ponto]

 dia, em nome da preservação do ambiente, ou de qualquer outra causa, que não vislumbro, num futuro que não sei como será, cenário de ficção científica, apocalíptico talvez, o livro em papel será objecto de museu!

Vem isto a propósito do debate sobre os usos e abusos da utilização dos instrumentos digitais na escola, que me traz o desconforto de estar na presença de um de­bate sem rumo e sem foco. Elege-se o smartphone como inimigo e, de re­pente, não é só este dispositivo que está em causa, mas to­dos os dispositivos electrónicos, como supor­te da in­forma­ção em geral, e do texto em particular. Somos o oito ou oi­tenta, vamos do endeusamento do digital à sua diaboliza­ção, com uma rapidez surpreendente (efeito de “Maria vai com as outras”, que nos dispensa da capacidade de pen­sar?).

Até há bem poucas semanas, quando se fa­lava dos perigos associados ao digital, não era o seu uso, em geral, que era posto em causa, mas o seu uso sem con­trolo. Agora, dizem-nos que “a simples proximidade de um telemóvel é capaz de distrair os estudantes (...), prejudicar a gestão da sala de aula (...) e pôr em risco a interacção humana”, como que a admitir que o trabalho na sala de aula (se de trabalho se pode falar, nestas condições) se desenrola em roda livre [1].

O que caracteriza a escola como espaço educativo, é o con­trolo do trabalho de aprendizagem que nele se realiza. Não se vai para a escola para usar os instrumentos de trabalho (digitais ou quaisquer outros), à vontade do fre­guês, sem critérios ou sem qualquer objectivo educativo no horizonte. En­tão, a questão está em saber em que condi­ções, e por quem, esse controlo é exer­cido. Aliás, como dizia António Nunes, no programa Antena Aberta, a propósito da entrada, na es­cola, das tecnologias de infor­mação e comu­nicação, “há momentos em que a voz é importante e as ca­netas estão paradas [2]. Ora, é precisamente ao professor que compete gerir estes momentos: decidir sobre os tempos em que os smartphones estão ligados ou desligados. Não acho, assim, pelo que se diz e escreve, que seja um problema que resulte da proximidade dos alunos com estes dispositivos, mas da dificuldade, ou mesmo da incapacidade, que grande parte dos professores sente, em gerir aqueles tempos. Conse­quência de uma autoridade (a sua), que a cada dia sentem que estão a perder e pensem que, desta forma, ela possa ser restau­rada? [3]

Se da presença dos smartphones, na sala de aula, se pode dizer que le­vanta, em muitos casos, problemas difíceis de gerir, já da substituição dos manuais escolares, em papel, pelos correspondentes digi­tais, não vejo que problemas possa trazer. Os ta­blets que suportam os manuais esco­lares permitem o acesso a conteúdos que não queremos que se­jam acessíveis aos nossos alunos? Fácil: bloqueie-se o seu acesso nesses dispo­sitivos; façamo-los dispositivos dedica­dos à leitura de manuais es­colares e de mais informação re­lacionada com eles.

Bastou a Sué­cia travar às quatro rodas, na digitalização dos ma­nuais escola­res para que, entre nós, se levantasse um coro de vozes a reivindicar idêntica decisão. Como se, o livro em papel, só consiga entrar na sala de aula através do ma­nual escolar... Esquece-se que, o que se passou na Suécia, foi o resultado de uma soma de excesso, que valeria a pena analisar, não vá começarmos nós, agora, a soma de outros excessos mas de sentido contrário [4].

Para mim e para outros como eu, que gostam de livros, o manual escolar é um “livro” que não é livro. É coisa da es­cola, um instrumento de trabalho que, sendo bem feito (seja qual for o seu formato), poderia ser ligação a outros livros, esses sim, a merecerem ser lidos ou consul­tados. Além do que, o livro digital (e-book) também é li­vro, e são cada vez mais as editoras que, a par da edição em pa­pel, apostam neste formato. Pela parte que me toca, con­fesso, são mais os livros que compro, hoje, neste formato do que em papel. Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua lei­tura, com o mesmo prazer ou desprazer, de­pendendo do conte­údo, excepto no ecrã de um pc.

Claro que, dir-me-ão, “sentes o mesmo prazer a ler e-books, porque passaste pelo livro em papel antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que trans­por­tas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro”. E é verdade, ou acho que é verdade: o desenvolvimento do gosto pela leitura de um livro faz-se também da relação (afectiva), que conseguimos estabelecer com o objecto que suporta o texto. Quem gosta de ler tam­bém gosta de livros. Quem gosta de livros também gosta de ler. Os miú­dos precisam de estar rodeados de livros para que possam relacionar-se com eles. Se não estão em casa, deveriam estar na escola, na sala de aula. 

O manual esco­lar digital só é concorrente do livro em papel se deixarmos que seja. Na Sué­cia, quiseram que o digital fosse con­cor­rente do analógico. E ele fez o que lhe compe­tia: deu cabo da concorrência! Porque deixa­ram que desse! Agora fazem marcha atrás, num processo em tudo seme­lhante, mas em sentido contrário, respei­tando, suposta­mente, as conclu­sões da "ciência". Temo que se esqueça que, em edu­cação, nem tudo (para não dizer nada) é científico; o que acontece, nesta área, tem em conta as ciências, certamente (da educação e outras), mas a sua aplicação não é científica, é pedagógica: uma acção inserida na busca do sentido do acto educativo, na sua relação com os instrumentos pedagógicos que melhor o servem [5]. Valeria a pena, certa­mente, trazer a voz dos pe­dagogos para o debate. 

Estranho mundo, este em que vivemos. Valorizamos o digital nas nossas vidas, mas não sabemos (nem procuramos saber) o que fazer para ajudar as nossas crianças e jovens a usá-lo de uma forma saudável! Apetece dizer, com Philippe Meirieu, “Velho devaneio filosófico: reduzir o mundo àquilo que podemos pensar dele ou àquilo que per­cebemos dele. E, para ter a certeza de lá chegar, fazê-lo en­trar in­teiri­nho no nosso campo de visão...” [6].

Entretanto, chegam-me notícias que dão conta de escolas que proíbem os smartphones nos recreios, aparentemente com a adesão dos miúdos: “Foi quase como se tivesse auto­rização para brincar” [7].

O recreio é um daqueles espaços que, embora na escola, é um espaço, de certa forma, sem controlo. Não é sobre estes espaços que escrevo. É sobre o uso dos dispositivos digitais em espaços controlados, que me atrevo a pensar. E que só neles é possível aprender a usá-los de forma sau­dável. Por­que se não há um espaço onde as crianças possam apren­der, elas aprendem, de qualquer forma, em qualquer es­paço, correndo o risco de aprender mal: no recreio, por exemplo. Nestes espaços, não con­tro­lados, e só nestes, que, tantas vezes, nem vigiados são, admito que o uso destes dispositivos possa ser vedado, não sem antes procurar que a decisão seja vista como legítima, aos olhos de todos quantos serão afetados por ela. 

E já agora, uma provocação, ou nem tanto: porque não vedar o uso do smartphone no espaço familiar, pelas mesmas razões com que se pretende proibir o seu uso na escola?

DISPONÍVEL em PDF >>>


[1] Onde o smartphone põe em risco a interacção humana, não é na sala de aula, onde é utilizado como instrumento de trabalho. O risco ocorre em espaços sociais não controlados, e em espaços familiares que os usa como “amas”.

[2] “Computadores na escola: quais os aspectos positivos e quais as des­vantagens”. Programa passado, em simultâneo, na TSF e na RTP2, em No­vembro de 2012.

[3] “O verdadeiro problema não é o declínio da autoridade, é o facto de se colocar em rivalidade as autoridades entre si no seio do próprio processo educativo (...). Aquilo que está verdadeiramente em causa não é restau­rar a autoridade mas de torná-la legítima aos olhos daqueles que estão sujeitos a ela, não só a fim de que a aceitem mas também de que a respeitem” (Philippe Meirieu, in O mundo não é um brinquedo, Porto, edições ASA, 2066: p. 28).

[4] O recuo da Suécia é algo mais complicado do que o simples processo de voltar atrás na digi­talização dos manuais escolares. Porque não é ape­nas a digitalização dos manuais que está em causa. Avançaram tão rapi­damente, e de um modo tão radical, neste proces­so de digitalização do ensino, que chegaram ao ponto de trocar não só o livro em papel pelo e-book, mas também de apostar na irradicação do papel, trocando-o pelo pixel, o que levou ao uso do teclado como instrumento privilegiado de escrita.

[5] "Viver é resolver problemas. É isso que é decisivo" - diria Karl Popper, se fosse chamado ao debate - "O mundo põe problemas à vida. Ao mesmo tempo a vida é o pressuposto do problema (...) e as teorias que colocamos ao mundo são tentativas de resolução de problemas". E não é pelo facto de ser retirado do espaço onde ele se manifesta que um problema deixa de ser problema.

[6] Philippe Meirieu, O mundo não é um brinquedo, Porto, Edições ASA, 2006: p.199.

[7] In Público on-line: 1 de Outubro, 2023.

A pedagogia e o digital: em que é que ficamos?

Meirieu
Versão portuguesa [condensada] de Luís Goucha

Assistimos, com um misto de preocupação e sensação de impotência, a um processo de desinstitucionalização da escola. Em poucos anos, passámos de uma escola institucional e estável, para uma “lógica de serviço”, onde cada um surge, conforme lhe apetece, com o que lhe apetece, esquivando-se da mínima contrariedade. Se, antigamente, se entrava na escola como quem entra num teatro, hoje entra-se na escola como numa sala de estar, em que a televisão está ligada e, se o programa não agrada, tiramos o comando ao vizinho e mudamos de canal. Num contexto assim, estruturar um colectivo é quase impossível. LER MAIS >>>